A reforma tributária que não será aprovada

Em uma mesa estão um óculos, moedas, gráficos e calculadora.
O povo brasileiro espera por reformas que venham alinhar práticas sociais às suas expectativas, notadamente nas relações entre os próprios indivíduos, que formam a sociedade, e o Estado, o executor daquelas práticas, por delegação. O que se alega comumente é que a mais importante reforma é a política, cabendo aqui destacar outra, igualmente essencial, a reforma tributária. O tema é discutido formalmente desde o ano de 2003 por membros dos poderes Executivo e Legislativo, com remotas chances de efetivo avanço, até porque a reforma necessária resultaria numa completa mudança nas atuais práticas tributárias, que são marcadamente regressivas. Basta ficar somente nas práticas, até porque o fundamento constitucional para procedimentos mais justos e qualificados já está na lei maior, esculpido no § 1o do art. 145: “Sempre que possível, os impostos terão caráter pessoal e serão graduados segundo a capacidade econômica do contribuinte, facultado à administração tributária, especialmente para conferir efetividade a esses objetivos, identificar, respeitados os direitos individuais e nos termos da lei, o patrimônio, os rendimentos e as atividades econômicas do contribuinte”. Num marcante desrespeito àquele dispositivo constitucional, o modelo tributário brasileiro é montado em práticas que não observam a capacidade econômica do contribuinte e nem identificam o patrimônio, os rendimentos e as atividades dos mesmos contribuintes. Cabe lembrar que nunca fez parte da cultura tributária brasileira cobrar tributos dos ricos O fato é que no desenvolvimento do mencionado modelo tributário optou-se por procedimentos calcados na tributação indireta, que incide sobre operações econômicas envolvendo bens e serviços, em detrimento da tributação direta, que incide sobre a renda e sobre o estoque de riquezas. Além de todas as deformações sociais que lhe são próprias, o modelo em vigor ainda causa efeitos maléficos em termos de concorrência, considerando que, no caso da indústria, grande parte dos tributos está no chão da fábrica. Reforma, na acepção pura do termo, resultaria na completa modificação dessa realidade. É inadmissível que ainda existam impostos incluídos nos preços de vendas de arroz, leite, pão, feijão e medicamentos, para ficar no limite desses casos essenciais, cujas operações comerciais não identificam a que classes sociais pertencem os compradores, ou, dito de outra forma, não identificam a capacidade econômica do contribuinte. Essa é uma realidade que atravessou décadas. A arrecadação tributária brasileira em 1995 era composta de 51% de tributos sobre produtos; 20% sobre a renda, propriedade e capital; e 29% de contribuições. Em 2008, era a seguinte composição, na mesma sequência: 46,59%; 25,85%; 27,56%. Vale a comparação com o que ocorre em termos médios nos países que integram a Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico – OCDE. Os dados apresentam uma pequena variação do ano de 1995 para o de 2005, sendo 31,9% os tributos sobre produtos; 40,5% sobre a renda, patrimônio e capital; e 26,4% as contribuições (os dados são de Cláudio H. Santos. Um panorama das finanças públicas brasileiras 1995/2009, in Tributação e Equidade no Brasil. Brasília: Ipea, 2010, p. 39). Nesse contexto, cabe citar o insignificante desempenho fiscal dos tributos que incidem sobre a riqueza, a exemplo do imposto sobre a propriedade territorial rural (ITR), do imposto sobre a transmissão causa mortis e doação, de quaisquer bens ou direitos (ITCMD), do imposto sobre a propriedade de veículos automotores (IPVA) e do imposto sobre a propriedade predial e territorial urbana (IPTU). Além disso, o imposto de renda brasileiro é de reduzida produtividade fiscal, na medida em que não consegue alcançar as altas rendas, além de ser contaminado por uma vasta coleção de dispositivos de caráter desonerativo, em favor dos integrantes das classes sociais mais privilegiadas, o que dá margem ao equivocado entendimento de uma baixa potencialidade na base de incidência do imposto. O contrário ocorre nos países sempre tomados como modelos: EUA, Japão, Alemanha, Reino Unido, França e Itália. Neles, as alíquotas máximas do imposto sobre a renda são, na mesma sequência, de 39,6%, 37%, 53%, 40%, 57% e 45% (PricewaterhouseCoopers, apud Fenafisco, 2010), ressaltando que no Brasil teve vigência uma alíquota de 35% para o imposto de renda, nos anos de 1994 e de 1995, revogada pela Lei 9.250/1995. Nesse particular, cabe lembrar que nunca fez parte da cultura tributária brasileira cobrar tributos dos ricos; ao contrário, em termos relativos, os pobres é que sempre arcaram com uma participação mais significativa no bolo tributário. Uma séria reforma passa necessariamente pela inversão dos dados dessa “equação tributária”, que resulte numa participação maior da tributação sobre as altas rendas e sobre o estoque de riquezas, incluído o imposto sobre grandes fortunas, que nunca saiu do “imaginário constitucional”. A transformação dessa realidade demanda algo como um novo contrato social, incluindo um novo modelo tributário ou uma efetiva reforma tributária, que, ao que tudo indica, nunca ocorrerá, por notória falta de vontade política. É necessário, portanto, encontrar um caminho que retire a responsabilidade das empresas pelo recolhimento do grosso dos tributos, que deveriam incidir, indiretamente, apenas nas operações com bens e serviços de baixa essencialidade, ficando a maior parte da arrecadação originada da tributação direta, alcançando as pessoas de elevada renda e/ou com expressivo patrimônio. Na falta de discussões mais qualificadas sobre o assunto, fala-se em iniciativas como a modificação da competência para cobrança do ICMS, que sairia dos Estados para União, ou, na simplificação/desburocratização nos procedimentos para recolhimento dos tributos. Tais iniciativas, ressalvadas aquelas atinentes ao Simples Nacional, não resultam em nenhum tipo de repercussão de ordem econômica ou social; a regressividade tributária continua a mesma e a reforma tributária ideal dificilmente acontecerá. *Paulo Dantas da Costa, presidente do Conselho Federal de Economia (Cofecon), é especializado em direito tributário e administração financeira governamental Via: Valor

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